Confira especial sobre a trajetória de Barbosa, que completaria 100 anos nesta 6ª-feira

Barbosa dizia que, mesmo depois de sua morte, falariam do gol de Ghiggia, na final da Copa do Mundo de 1950. A sensação não tinha nada a ver com culpa. Nos últimos anos de vida, quem passeasse por Praia Grande (SP) encontraria um senhor alinhado, com seu “birinight” no copo, relaxado num quiosque. Gostava de lembrar da carreira, das conquistas e dos amigos. E tinha um orgulho danado, sim, senhor, de um vice-campeonato mundial.

Há 100 anos, num dia 27 de março, nascia, em Campinas, Moacyr Barbosa Nascimento. O homem que levantou todos os troféus de sua época pelo Vasco e tornou-se um dos maiores goleiros da história do Brasil. Fora de campo, nos últimos anos de vida ele sentia falta da esposa Clotilde e convivia com a filha do coração Tereza Borba, guardiã de sua história. O centenário de Barbosa é motivo para celebrar sua história.

O ge homenageia o histórico goleiro da Seleção e do Expresso da Vitória do Vasco. Desde Campinas (SP) até seus dias finais no litoral paulista, o próprio Barbosa conta a sua trajetória ao longo de entrevistas concedidas durante seus 79 anos de vida.

AS ORIGENS

Quinto filho de Emidio e Isaura, Barbosa sofreu algumas perdas antes de começar no futebol. Um irmão faleceu aos 20 anos, outro com apenas 14. O franzino futuro goleiro começou a jogar profissionalmente no Ypiranga, de São Paulo, no início dos anos 1940. Os pais queriam vê-lo marceneiro de renome, mas um coice de um cavalo numa fazenda, em 1935, tirou a vida do pai de Barbosa e mudou o rumo do então adolescente. Ele largou os estudos em Campinas e se mudou para a capital paulista, com a irmã Adeliza.

Lá, trabalhou como lavador de vidros de produtos farmacêuticos e começou a atuar pelo time do Laboratório Paulista de Biologia. Foi tricampeão da Liga Comercial (1939, 1940 e 1941) já como goleiro, mas o início foi um pouco diferente.

– Comecei de ponta-direita. Um dia faltou goleiro, e meu cunhado disse: “Você leva jeito, vai para lá”. Eu fui e deu certo. Achei que ali eu levava menos pontapé do que jogando na frente. Diziam que o ruim vai para o gol ou vai para a galinha morta, que era o ponta-esquerda, que é mais fácil de tirar. E deu certo, como deu certo. Desde o início. Fui subindo, subindo, subindo, até chegar ao cume, que é a seleção brasileira.

Em 1986, Barbosa lembra a trajetória da Seleção na Copa de 1950

Eram outros tempos, nem em sonho existia a figura do preparador de goleiros. Sabe como treinava Barbosa? Com 1,77m de altura e 74 kg, ele defendia seus próprios chutes no rebote de um paredão em São Januário – mais veterano, em fim de carreira, ajudou a formar muitos goleiros também.

– Não tinha treino nem ninguém específico. Não tinha nada. Tinha que saber por intuição. Quando eu jogava no Ypiranga (SP), disseram que não me venderiam para clube de São Paulo, então fui para o Rio de Janeiro. O Vasco da Gama pagou aquilo que o Ypiranga queria e eu fui. Naquela época, uma família dominava o Yprianga, e um dos donos disse que eu iria para o Flamengo, que era o time do irmão dele. Mas o Vasco se antecipou, pegou e me levou embora.

A indicação de Barbosa para o Vasco foi de outro craque, Domingos da Guia, que o recomendou ao técnico uruguaio Ondino Vieira.

– Domingos falou para que o Ondino viesse me buscar, porque ele garantia. Nos enfrentamos quando ele estava no Corinthians.

O APOGEU

Cantor e compositor de sucesso dos anos 1930 e 1940, o sambista Wilson Batista cantava versos que nunca saíram da cabeça de Barbosa.

“No boteco do seu Zé / Entra homem, entra menino

Entra velho, entra mulher / É só dizer que é vascaíno

E que é amigo do Lelé”

Veja Barbosa cantando a canção de Wilson Batista a partir de 2:20 do vídeo

A referência da canção ao atacante Lelé, um dos expoentes do Expresso da Vitória, encantava o goleiro muitos anos depois da aposentadoria. No Vasco, Barbosa viveu os melhores anos de sua carreira. Titular indiscutível de um dos grandes times do clube, entrou na galeria de ídolos eternos e até hoje é considerado o maior goleiro da história vascaína.

No Vasco, em 1945 – ano em que defendeu a Seleção pela primeira vez -, conquistou o primeiro título da carreira em clubes (antes, pela seleção paulista, foi campeão em 1941 e 1942). O time-base era Barbosa, Augusto e Rafanelli; Ely, Danilo e Jorge; Djalma, Lelé, Isaías, Jair e Chico. O goleiro gostava de lembrar que na sua época o Vasco tinha mais torcida do que o Flamengo.

– Fui tetracampeão com a seleção carioca em 1945, 1946, 1947 e 1948. Fui campeão sul-americano em 1948, invicto. Também fui campeão carioca invicto em 1945, 1947 e 1949. Depois, vencemos 1950, 1952, 1956 e 1958.

Alguns números indicam o tamanho de Barbosa na história do Vasco. É o sétimo jogador (e o terceiro goleiro) com mais partidas pelo clube, com 282 vitórias, 74 empates e 75 derrotas em 431 partidas. Além disso, apenas Roberto Dinamite e Sabará venceram mais jogos com a camisa vascaína. E nenhum atleta levantou mais taças do que Barbosa pela equipe. Ao todo foram 15 títulos, o maior deles o Sul-Americano de 1948.

Em São Januário, Barbosa se sentia em casa. Fez amigos, ganhou a vida e guardou na retina os momentos mais lindos da carreira. Não só pelo que conquistou em campo.

– A gente tinha o que a gente chamava de “turma do caroço” no Vasco. Nos reuníamos todas as terças para discutir o que tínhamos feito. Como a gente se reunia no domingo após os jogos, na terça, em vez de de treinar, desaparecíamos. Íamos para Paquetá, outra vez ia para um sítio, a gente saía… Para evitar exatamente a imprensa.

– Ali a gente lavava a roupa suja, desde o roupeiro até o massagista, até o presidente do clube, cada um tinha o direito de falar.

O nome “turma do caroço” veio do técnico Flavio Costa, referência que trouxe do Colégio Militar. Em reunião, quatro décadas antes da famosa Democracia Corintiana, Barbosa, Ademir e outros craques tiveram que ser convencidos de contratação de Heleno de Freitas, ex-adversário pelo Botafogo. Ele foi campeão carioca com o Vasco em 1949. Barbosa tem relato interessante sobre o polêmico ídolo alvinegro.

– O Flavio precisou nos reunir para que nós aprovássemos a contratação do Heleno. Porque, se não aprovássemos, ele também não viria para o Vasco. E ele veio, ficou um ano, foi embora para a Colômbia. Ele era temperamental, tinha certa psicose por riqueza. Se você chegasse “Ih, esse sapato você trouxe de Paris?”, no dia seguinte ele aparecia com sapato e dizia que foi de mais longe. Ele tinha isso, era família abastada. Mas tinha isso, de ser também melhor do que os outros.

O PESCADOR DE SONHOS

Barbosa jogou até os 42 anos. No fim da carreira, por respeito e admiração, era chamado de “tio Barbosa” pelos novatos. Surpreendeu o mundo do futebol com retorno em grande forma mesmo depois de quebrar a perna numa dividida com o atacante Zezinho, do Botafogo, em 1953. Fraturou dois ossos da perna direita e ficou 40 dias no hospital em recuperação num tempo em que a medicina esportiva engatinhava.

Dormia e acordava cedo, mantinha dieta rigorosa e cuidava da mente com vara de pescar e muita paciência nas águas. Tinha um caniço (vara) importado da Suíça, que lhe ajudou a pescar certa vez uma arraia de quase 1 metro – ao menos era o que o goleiro garantia. A pesca lhe deixava relaxado.

– Sentado em cima de uma pedra, à beira de um rio, com caniço na mão é que vejo quanto a solidão, a espaço de tempos regulares, é necessária ao homem. Quando estou só pescando, sinto-me mais Moacyr Barbosa, penso melhor, raciocino com mais lucidez e, por algumas horas, esqueço que, semanalmente, tenho de guarnecer a meta de algum clube. E que, num segundo, num lance infeliz, posso jogar por terra o trabalho de toda uma equipe.

– Os momentos que passo pescando me são tão benéficos que, quando tomo assento no automóvel para fazer a viagem de retorno, sinto-me completamente mudado. Sou outro.

A ELEGÂNCIA

Cidade em que viveu os maiores sonhos e a grande decepção da final da Copa, o Rio de Janeiro abrigou o paulista Barbosa até meados dos anos 1990. Com o pouco dinheiro que o futebol lhe deu, comprou uma casa em Ramos, na zona norte. Foi na Rua João Romariz, número 56, que ele presenciou cena impressionante quando voltou do Maracanã no dia 16 de julho de 1950, depois da derrota do Brasil para o Uruguai.

A rua estava preparada para a festa que não aconteceu. O silêncio do campo de futebol se espalhou pelas calçadas.

– A minha casa ficava num conjunto de 18 residências, eram nove de cada lado. No meio tinha um jardim. Ali foram colocadas mesas com comida e bebida de todo tipo que tivesse. Quando passei por ali com meu carro, eu vi uma cena que chocava. Um ventinho descobriu aquela coisa toda, de peru, de ovo, tudo que era comida da festa para festejar o título.

– O vento tirou aquelas toalhas, e até os cachorros que estavam ali não se animaram a subir na mesa para comer. Quer dizer, isso é um negócio que calou fundo na gente, os cachorros olhando, não avançavam. Dói olhar aquilo. Ninguém comeu, ninguém bebeu. São cenas que ficam gravadas no fundo da mente da gente. Isso não esqueço jamais.

Anos depois, quando se mudou para Praia Grande, onde vivia a irmã, Barbosa conheceu Tereza Borba, a filha que ele não teve com Clotilde. A amizade se tornou relação de pai e filha. Tereza e o marido Mauro se tornaram a nova família do ex-goleiro, que ficou viúvo em 1997 – a esposa morreu de câncer.

– Não quero ser mais o Barbosa da Copa do Mundo de 50. Quero ser o Barbosa normal, que foi um jogador de futebol e que hoje vive a sua vida tranquilo – dizia quando era questionado sobre o Mundial.

Mesmo que evitasse o tema e nem por um segundo se sentisse vilão de uma decepção esportiva protaganizada por uma seleção de futebol, as referências a 1950 o incomodavam. Aquela final serviu de pretexto por décadas ao racismo que afastou tantos garotos da posição em que Barbosa atuava. A Seleção só voltou a ter um negro como goleiro titular em Copa do Mundo em 2006, com Dida.

Assim a “Folha de S.Paulo” noticiou o enterro de Barbosa na edição de 9 de abril de 2000.

“Os inquisidores podem soltar os seus foguetes. Moacir Barbosa, escolhido como o grande culpado pela maior tragédia da história do futebol brasileiro, foi enterrado ontem, pela segunda vez e definitivamente, no cemitério Morada da Grande Planície, na Praia Grande (SP).

O ex-goleiro da seleção brasileira morreu às 22h30 de anteontem, aos 79 anos, na Santa Casa da Praia Grande, por problemas decorrentes de um acidente vascular cerebral sofrido na última quarta.”

Sereno, Barbosa driblava as chateações, mesmo quando eram nada discretas. Num trem carioca, certa vez, ouviu de um rapaz sentado à sua frente: “Se eu encontrasse aquele cara, o Barbosa, você ia ver o que eu ia fazer”.

– Eu estava com o rosto escondido atrás do jornal. Eu abaixei: “Por acaso o amigo está me procurando?” O cara saiu do trem pela janela.

Chegou a ser apontado na rua por uma senhora para o filho de 10 anos. “Olha, esse é o homem que fez o Brasil inteiro chorar”. Com toda calma do mundo, o velho goleiro vascaíno respondeu: “Minha senhora, talvez se fosse seu filho que estivesse no meu lugar, você não dissesse isso agora para ele”.

– Não gosto de falar nem de comentar isso. Exatamente pela falta de respeito ao jogador, não só à pessoa humana. Porque o sujeito acha que ser vice-campeão do mundo não vale nada. Aqui no Brasil, porque em outros países vale.

– Às vezes sim, sou marcado. Ainda há pouco tempo, estávamos no bar que frequento e um cara veio falar de 1950, “Olha, meu filho, acabou a conversa aí”, eu falei para ele. As leis de condenação aqui no país de quanto tempo são? A maior condenação é de 30 anos. Já passaram 43 anos e acho que já paguei 13 anos a mais, então não tenho razão para discutir contigo nem para dar uma explicação, tá certo? Não sou criminoso.

– Tenho direito de pelo menos dormir tranquilo.

O PALESTRANTE

– Fui para ficar 10 dias, terminei ficando 10 meses.

A frase acima é de Barbosa, nos últimos anos de carreira. Quando foi para o Recife atrás de mais um pé de meia que garantisse uma vida tranquila na aposentadoria. Não foi fácil. Chegou a receber sondagens do futebol venezuelano e ria quando jornalistas lhe perguntavam se estava rico.

A proposta do Santa Cruz veio em 1955. Barbosa já não vivia a melhor forma da carreira, mas era uma atração à parte. Num amistoso do Vasco com o Santa Cruz, foi chamado pelos dirigentes do clube pernambucano para ficar no Recife. Já com planos de parar de atuar, pensou em fazer proposta que não podiam pagar:

– Quero 200 mil cruzeiros de luvas e 20 mil mensais.

O goleiro campeão de tudo no Vasco e da seleção brasileira – depois da Copa de 1950, ainda atuou no Sul-Americano de Lima, numa vitória por 2 a 0 sobre o Equador, a última das 20 partidas com a Amarelinha – foi defender o Santa Cruz. Os torcedores pernambucanos foram à loucura e literalmente pagaram o goleiro.

– Puseram umas urnas em diversos lugares da cidade, fazendo coleta para que os torcedores ajudassem a pagar as luvas. Também realizaram um treino coletivo com ingresso pago. Resultado: apuraram 175 mil cruzeiros.

No Recife, Barbosa foi campeão do Torneio Pernambuco-Bahia e depois voltou para o Vasco em 1956. Treinou no Olaria para manter a forma, defendeu o Bonsucesso em 1957 e retornou ao Vasco para seus últimos títulos (o Carioca e o Rio-SP de 1958). Só parou depois de mais uma lesão pelo Campo Grande. O “Vovô” Barbosa, como diziam os jornais, fez um bom papel.

No fim da vida, o eterno goleiro vascaíno tinha dificuldades de manter o aluguel em Praia Grande, mas contou com uma importante ajuda. O então vice-presidente de futebol do Vasco, Eurico Miranda, prontificou o clube de São Januário para arcar as despesas – cerca de R$ 2 mil mensais.

– Tenho aposentadoria… Se é que pode se chamar de aposentadoria. São R$ 130. Mas acredito que um cara que quer viver com R$ 130 não pode viver nunca. Vai morrer de fome. Eurico Miranda me dá uma ajuda. Ele me auxilia, pago meu aluguel, pago a minha pensão e dá para sobreviver.

A filha, entusiasta da história do pai de coração, levantou Barbosa e disse em alto e bom som no programa do Jô Soares o telefone para palestra do goleiro.

– Ele estava muito apagadinho, tinha essa coisa de 1950 em cima dele e falei: “Vamos começar a mudar essa história, essa estigma”. Você vai falar do Barbosa do Vasco da Gama. “Se alguém quiser falar com você, diz ‘Falo sim, mas falo de Vasco da Gama'”. Ele fez algumas palestras, foram poucas, uma vez na USP (Universidade de São Paulo), mas fez muito feliz. Recebia uns R$ 300 a R$ 500. Mas ele adorou. Ele falava: “Neguinha, é por isso que eu digo que você é a filha que eu não tive” – relembra Tereza.

Se não tinha a esposa Clotilde, Barbosa viveu os últimos dias de vida acolhido por uma nova família. Mas a falta da esposa sempre esteve lá.

– Sinto saudade da minha esposa. Foram 54 anos de casado, mas o tempo ajuda a gente a substituir essas pessoas que se foram pelo bem que a gente sente com os amigos e com os amigos que a gente tem.

O goleiro que encantou a América era capaz de perdoar os ataques dentro do próprio país. Quando se encontrava com o uruguaio Ghiggia, trocavam abraços e sorrisos. Em 1951, eles voltaram a se enfrentar, com vitória do Vasco sobre o Peñarol. Dentro e fora de campo, Barbosa foi um homem que cumpriu sonhos e fez sorrir.

– Realizei muitos sonhos. Acho que só faltou um, que era ser campeão do mundo, o único troféu que eu não tinha. O resto eu tenho todos. Não fiz mal a ninguém, também não sinto que ninguém fez mal a mim. Então vivo bem, estou feliz assim.

Este texto foi construído com consultas a entrevistas e depoimentos de Barbosa às seguintes fontes:
– Jornais O Globo, Jornal do Brasil, Jornal dos Sports, revistas Esporte Ilustrado, Revista do Esporte, Placar, Cruzeiro.
– Livros Enciclopédia da Seleção (1914-2002), de Ivan Soter; Queimando as Traves de 1950, de Bruno Freitas; Anatomia de uma Derrota, de Paulo Perdigão; Barbosa, de Roberto Muylaert; e Dossiê 1950, de Geneton Moraes Neto.
– Esporte Espetacular, da TV Globo, reportagem da TV Cultura e entrevista de Barbosa no programa “Jô Soares Onze e Meia”, do SBT.

Fonte: ge

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