Felipe Maestro e ex-VP de futebol José Luis Moreira relembram pagamento de ‘bicho’ no Vasco

Poderia ser uma daquelas crônicas românticas sobre um futebol que já não existe. Mas aconteceu em 2021: em momento registrado na série “Acesso Total: Botafogo”, do Globoplay, o presidente Durcesio Mello entra no vestiário após uma vitória alvinegra com envelopes nas mãos. É recebido com festa pelos jogadores e distribui o prêmio por um triunfo na campanha do título da Série B.

A relevância do bicho — extra pago a jogadores e comissão — na dinâmica de um clube como o alvinegro, às voltas com salários atrasados e que defende a profissionalização a ponto de estar na iminência de se tornar sociedade anônima, levanta a questão: por que a prática, tão simbólica de um amadorismo renegado, continua viva no futebol brasileiro?

— Eu relutei a dar o bicho. A gente acertou uma premiação no final, em caso de acesso, mas a partir do quarto ou quinto jogo os jogadores começaram a reclamar que seria importante ter um bicho — conta Durcesio à série documental, lembrando que ele bancou boa parte do valor, com ajuda de Carlos Augusto Montenegro (ex-dirigente) e do amigo Fernando Pereira.

A principal explicação para a sobrevivência da prática é cultural. O bicho existe no esporte há 100 anos — estima-se que tenha ocorrido pela primeira vez na década de 1920. Eram tempos de esporte amador, em que os atletas não podiam receber para entrar em campo. A premiação era uma maneira de driblar a falta de regulamentação da prática e tornar o jogo uma fonte de remuneração para os atletas.

A profissão foi regularizada no Brasil em 1933, mas o bicho seguiu valendo. Até por conta de um profissionalismo capenga, por muito tempo a premiação que saía do bolso de torcedores e dirigentes ricos era maior do que o próprio salário pago.

— Quando eu comecei no Vasco, em 1996, eu adorava o bicho. Era maior do que o meu salário. Em 1997, eu não me importava que meu salário atrasasse. Foi um ano em que ganhamos muitos jogos, e o bicho resolvia — lembra o ex- meia Felipe, hoje técnico do Bangu.

Bom para dirigentes

Do fim dos anos 1990 para cá, o futebol passou a movimentar muito mais dinheiro. O jovem tido como boa promessa de um grande clube assina seu primeiro contrato profissional aos 16 anos geralmente recebendo cifras acima dos R$ 10 mil. Ainda assim, o bicho segue importante na rotina dos clubes. Muitas vezes, é algo estimulado pelo dirigente, que usa o prêmio para ganhar a confiança dos jogadores, ser aceito no vestiário e exercer controle.

— Se você prometer, tem de cumprir, dar um jeito de pagar — afirma José Luiz Moreira, por anos vice-presidente de futebol do Vasco. — Não tenha a menor dúvida, eu paguei muito bicho.

Existem diferentes maneiras disso ser feito. Tem o dinheiro em espécie, que sai do bolso do dirigente-torcedor e chega ao jogador sem entrar na contabilidade do clube. Já nos tempos da Unimed no Fluminense, o elenco recebia um cartão pré-pago da patrocinadora.

A premiação por vitória também pode ser oficial, bancada pelo clube. Neste caso, entra na contabilidade — Durcesio garante que o do Botafogo entrou —, e o valor sofre desconto do imposto de renda. Há quem pague o bicho a cada resultado e quem prefira quitar a dívida com elenco e comissão mensalmente ou a cada duas partidas.

Os valores também variam. No São Paulo, nos tempos áureos do tricampeonato brasileiro, entre 2006 e 2008, ele chegava a ser de R$ 25 mil para cada jogador. O Flamengo, na disputa do Mundial de Clubes de 2019, estipulou que o bicho pelo título valeria nada menos que 22 milhões de dólares, a serem divididos entre jogadores e comissão técnica.

Às vezes, ele é motivo de atrito. Em 2019, dirigentes e jogadores do Fla divergiram sobre quanto a comissão técnica deveria ganhar. A vitória sobre o Liverpool não veio, o fogo se apagou, mas deixou marcas, tanto que o prêmio extra deixou de ser pago. O bicho também reforça a hierarquia do vestiário. Geralmente, são os líderes do elenco os responsáveis por determinar a divisão do dinheiro — membros de comissão técnica e estafe, que recebem os menores salários, ganham menos, enquanto jogadores, mais.

Ainda que pequena para atletas com vencimentos na casa das centenas de milhares de reais por mês, a quantia acaba sendo importante porque, dependendo de como é paga, fica à margem das fontes de renda oficiais, geralmente monitoradas de perto por pais, esposas e empresários. O bicho acaba sendo a única chance para o jogador ter gastos não rastreáveis pelas pessoas ao redor.

Fonte: O Globo

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